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Controle de ponto por exceção e o sistema de autogestão na jornada

O art. 74, § 2º, da CLT determina ao empregador que realize o controle da jornada de trabalho dos seus empregados, nos seguintes termos, verbis: “para os estabelecimentos de mais de dez trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e de saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho, devendo haver pré-assinalação do período de repouso”.

O controle de ponto por exceção é aquele por meio do qual o empregador efetua o controle apenas da jornada extraordinária. Ou seja, sempre que a jornada for ordinária, nada se anota. Anota-se apenas as excepcionalidades.

Pode-se questionar se a norma coletiva que autoriza a dispensa de controle formal de horário se sobrepõe ao disposto no artigo 74, § 2º, da CLT. Em sendo a resposta positiva, isso exime a empresa do cumprimento do disposto no aludido artigo celetista.

Sobre o tema, impende registrar que o artigo 611-A, X, da CLT, inserido pela Lei nº 13.467/2017 – Reforma Trabalhista – autoriza a prevalência das normas coletivas que disciplinam a modalidade de registro de jornada de trabalho em relação às disposições da lei.

A jurisprudência do TST sempre foi no sentido de que a adoção do sistema de controle de ponto por exceção, ainda que previsto em norma coletiva, é inválida, pois afronta o art. 74, § 2º, da CLT, norma de ordem pública. O entendimento também era fundamentado no sentido de que o legislador constituinte, ao prever o reconhecimento das negociações coletivas (CF, art. 7º, XXVI), não chancelou a possibilidade de excluir direito indisponível dos trabalhadores por meio dessa modalidade de pactuação.

No entanto, mais recentemente, e já após a reforma trabalhista, a 4ª Turma do TST chancelou norma coletiva em que se autorizava a marcação somente das horas extraordinárias realizadas, cujo julgamento ficou assim ementado:

RECURSO DE REVISTA. SISTEMA DE CONTROLE ALTERNATIVO DE JORNADA. PREVISÃO EM NORMA COLETIVA. VALIDADE. PROVIMENTO. A teor do preceito insculpido no artigo 7º, XXVI, da Constituição Federal, é dever desta Justiça Especializada incentivar e garantir o cumprimento das decisões tomadas a partir da autocomposição coletiva, desde que formalizadas nos limites da lei. A negociação coletiva, nessa perspectiva, é um instrumento valioso que nosso ordenamento jurídico coloca à disposição dos sujeitos trabalhistas para regulamentar as respectivas relações de trabalho, atendendo às particularidades e especificidades de cada caso. É inequívoco que, no âmbito da negociação coletiva, os entes coletivos atuam em igualdade de condições, o que torna legítimas as condições de trabalho por eles ajustadas, na medida em que afasta a hipossuficiência ínsita ao trabalhador nos acordos individuais de trabalho. Assim, as normas autônomas oriundas de negociação coletiva, desde que resguardados os direitos indisponíveis, devem prevalecer sobre o padrão heterônomo justrabalhista, já que a transação realizada em autocomposição privada resulta de uma ampla discussão havida em um ambiente paritário, no qual as perdas e ganhos recíprocos têm presunção de comutatividade. Na hipótese, a Corte Regional reputou inválida a norma coletiva em que autorizada a marcação somente das horas extraordinárias realizadas, sob o fundamento de que contrariava previsão expressa em lei. Isso porque, em razão de o artigo 74, § 2º, da CLT determinar, obrigatoriamente, a anotação, pelo empregador, dos horários de entrada e de saída dos empregados, essa exigência não poderia ser afastada por meio de negociação coletiva. Conforme acima aduzido, a Constituição Federal reconhece a validade e a eficácia dos instrumentos de negociação coletiva, desde que respeitados os direitos indisponíveis dos trabalhadores. Ocorre que a forma de marcação da jornada de trabalho não se insere no rol de direitos indisponíveis, de modo que não há qualquer óbice na negociação para afastar a incidência do dispositivo que regula a matéria, com o fim de atender aos interesses das partes contratantes. Impende destacar, inclusive, que o artigo 611-A, X, da CLT, inserido pela Lei nº 13.467/2017, autoriza a prevalência das normas coletivas que disciplinam a modalidade de registro de jornada de trabalho em relação às disposições da lei. É bem verdade que o aludido preceito, por ser de direito material, não pode ser invocado para disciplinar as relações jurídicas já consolidadas. Não se pode olvidar, entretanto, que referido dispositivo não trouxe qualquer inovação no mundo jurídico, apenas declarou o fato de que essa matéria não se insere no rol das garantias inegociáveis. Ante o exposto, mostra-se flagrante a afronta ao artigo 7º, XXVI, da Constituição Federal. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento. (RR-2016-02.2011.5.03.0011, Relator Ministro: Guilherme Augusto Caputo Bastos, Data de Julgamento: 09/10/2018, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 11/10/2018)

O tema é polêmico e a decisão cuja ementa foi acima transcrita é isolada. O entendimento ainda prevalecente no TST, em várias outras turmas, é pela invalidade das normas coletivas que adotam esse controle alternativo de jornada.Mas, a tendência é que a jurisprudência realmente se altere, porque o artigo 611-A, X, da CLT autoriza a prevalência das normas coletivas que disciplinam a modalidade de registro de jornada de trabalho em relação às disposições da lei. Ainda, pelo fato de que essa matéria não se insere no rol das garantias inegociáveis, o que foi inclusive ratificado pelo art. 611-A, X, da CLT.

Vale lembrar, por fim, que o TST, após a Reforma Trabalhista, já considerou válida norma coletiva que prevê o sistema de autogestão da jornada, também com fulcro no art. 611-A, X, da CLT e art. 7º, XXVI, da CRFB/88.

 

Autogestão da jornada

O sistema de autogestão da jornada é aquele por meio do qual as próprias partes, via negociação coletiva, estabelecem a forma pela qual se dará o registo da jornada de trabalho. A autogestão encontra previsão legal expressa no art. 611-A, X, da CLT, incluído pela Reforma Trabalhista, pelo qual “a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: […] X – modalidade de registro de jornada de trabalho”.

Assim, a obrigação contida no art. 74, § 2º, da CLT, pode ser flexibilizada por negociação coletiva. Logo, a forma de marcação da jornada de trabalho não se insere no rol de direitos indisponíveis dos trabalhadores, de modo que não há qualquer óbice na negociação para flexibilizar a incidência do dispositivo que regula a matéria, com o fim de atender aos interesses das partes contratantes.
Assim, em princípio, a norma coletiva pode prever qualquer forma de controle da jornada, inclusive o chamado controle de ponto por exceção como, a propósito, o TST já entendeu válido.

Contudo, em decisão recente, o TST, de forma equivocada, entendeu válida norma coletiva que prevê a total dispensa do controle forma de registro de horário. No caso enfrentado, a 4ª Turma da Corte deu valor absoluto à norma coletiva examinada e declarou a validade de cláusula que autorizava o pagamento antecipado de determinado número mensal de horas extras, cabendo aos empregados informar eventuais horas não compensadas que excederem o quantitativo pago antecipadamente, dispensando-se o controle formal de registro de horário.

Ora, dispor sobre a modalidade de registro de jornada de trabalho não é o mesmo que dispensar por completo o controle formal do registro de horário. O art. 611-A, inciso X, da CLT autorizou a flexibilização e não a desregulamentação da medida. É preciso que o controle seja feito de algum modo, por isso a lei diz que a negociação coletiva poderá tratar da modalidade.

Nesse prumo, a norma coletiva que autoriza a dispensa de controle formal de horário não se sobrepõe ao disposto no artigo 74, § 2º, da CLT, tampouco está abrigada pelo art. 611-A, inciso X, da CLT. E, mais ainda, não se sobrepõem às normas constitucionais sobre duração do trabalho (art. 7º, inciso XIII, da CRFB/88) e de saúde, higiene e segurança do trabalho (art. 7º, inciso XXII, da CRFB/88). A Constituição não diz expressamente que “é direito dos trabalhadores o registro de jornada”. E nem precisa dizer, pois esse direito é extraído das normas constitucionais relativas ao meio ambiente do trabalho.

Nem se pode argumentar que a dispensa do controle formal de registro de horário permite o controle informal. No mundo dos fatos, não se afigura crível qualquer tipo de controle informal, pois inconcebível. Controle informal é um não controle. Controle informal carrega em si uma contradição em termos. É como se o empregado, a cada dia que fizesse horas extras, anotasse em sua caderneta particular a quantidade de labor extraordinário. Esse tipo expediente, por certo, não encontra amparo na real autogestão da jornada previsto no art. 611-A, inciso X, da CLT.

Também, é certo que as hipóteses do art. 611-A da CLT não são taxativas, ou seja, a autonomia negocial privada pode dispor de outras matérias além das que estão previstas nos incisos do referido dispositivo. Mas, em se tratando de jornada, o que a lei autorizou foi a flexibilização da modalidade de registro. Ou seja, quanto ao registro, o legislador deixou claro o recado no inciso X: o máximo que as partes podem fazer é dispor sobre sua modalidade e não sobre sua eliminação.

Assim, não se nega que o caput do art. 611-A da CLT, contém a expressão “dentre outros”, consagrou rol exemplificativo de hipóteses na qual a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei. Mas, quanto à matéria registro de jornada de trabalho o inciso X, em manifesta restrição ao próprio caput, previu uma verdadeira cláusula de contenção da autonomia privada coletiva. Caso a mens legis fosse permitir a prevalência do negociado sobre o legislado nessa matéria, melhor seria a não inclusão do tema em um dos seus incisos.

Como asseverado, ao contrário do que decidiu a 4ª Turma do C. Tribunal Superior do Trabalho, não pode a norma coletiva dispensar o controle da jornada. A norma coletiva pode apenas tratar do modo pelo qual a jornada será controlada, mas jamais afastar por completo a obrigação contida no art. 74, § 2º, da CLT.

Está correta a fundamentação do TST quando afirma que “a forma de marcação da jornada de trabalho não se insere no rol de direitos indisponíveis”. Isso porque alguma forma deve haver, o que não ocorrerá com a norma coletiva que dispensar o registro.

A CLT prevê e autoriza a flexibilização da modalidade de registro de jornada. No entanto, em havendo dispensa do próprio registro em si, a norma extrapola a licitude do objeto, devendo ser declarada inválida, pois elimina, por consequência, a própria possibilidade fática de existência de alguma modalidade.

Não se trata de negar valor ao negociado sobre o legislado, direito fundamental dos trabalhadores (art. 7º, inciso XXVI, da CRFB/88) e que deve sempre ser incentivado, mas apenas de se interpretar o disposto no art. 611-A, inciso X, da CLT dentro dos quadrantes semânticos do texto legal.

 


Fonte: JOTA, por Raphael Miziara

https://bit.ly/2Vc8EMT

25 mar. 2019